05/04/2013

O SUSTENIDO


Martinho da Tuba, ou Martinho Barbeiro, atravessou toda a cidade carregando a velha espingarda. Vestia, ainda, a gloriosa farda da Banda Municipal. Segurava a arma com uma das mãos, pelo cano, e a arrastava como se quisesse desintegrá-la pouco a pouco. Olhava para baixo e do chão não desviou o olhar nem quando passou mulher bonita. Falar não falava e só se ouvia um burburinho oriundo do grupo de curiosos que o seguiam. 

                 
Era domingo, meio-dia, tinha sono e não era por dormir tarde. Durante todo o sábado trabalhou muito, como sempre, munido de tesoura e navalha. E ouvido. Martinho perguntou ao filho, logo após o serviço: “Sabe qual a ferramenta principal de um barbeiro?”.  Acertou quem respondeu: “o ouvido”.  Martinho jantou e se recolheu ao quarto, queria dormir e entrar em um estado de não pensar. Errou: a cama parecia de madeira dura e o travesseiro era de pura pedra. Levantou-se muito cedo e enquanto saía o filho chegava: “Fui comemorar, pai. Eu e o padrinho”. Martinho da Tuba seguiu com seu instrumento rumo ao coreto e tocou como nunca. Depois de muitas marchas e dobrados, quando a última música terminava, um não-sei-quem gritou: “TEM GATO NA TUUUUUBA”. O músico acabou de tocar a peça, depositou o velho instrumento no chão e saiu sem se despedir. Os colegas de banda bem que estranharam, afinal o barbeiro nunca se separava da tuba, limpava e lustrava o instrumento todos os dias. A tuba brilhava, solitária, ao sol do meio dia...

                 
Ao chegar à casa viu a mulher na cozinha. A figura magra dispensava toda a atenção às panelas fumegantes, nem percebeu a chegada do marido. Fazia tudo em silêncio, com pena de acordar o menino. Martinho pensava no garoto enquanto se dirigia ao quarto. Por que comemorar com o padrinho? Desaforo, ou o que? Trabalhou duro para pagar os estudos do menino. E ainda trabalhava! E não é que quando o danado consegue passar no vestibular e realizar o grande sonho de estudar medicina veterinária, esquece o próprio pai e vai à farra com o compadre? Martinho ajeitou a cadeira, nela subiu e retirou a velha espingarda de caça do armário. 

                 
A arma fora do seu pai, caçaram juntos muitas vezes. Os tempos mudam e já não se caça mais. O barbeiro, após a morte do pai, ainda tentou traquejar algum animal. Foi à caça, pela última vez, mais por precisar ficar só e por os pensamentos em ordem. Noite de lua cheia, empoleirado em galho grosso, a poucos metros do bebedouro, só pensava em acabar com a vida do compadre. O pensamento puxava o gatilho e os olhos viam o homem caído, quando o ruído vindo do mato despertou o instinto do caçador. O veado abaixara a cabeça, pronto a sorver a água do bebedouro e levar o tiro mortal entre as orelhas. Isso só não aconteceu porque Martinho da Tuba percebeu uma figura menor, ao lado do macho. Um filhote, despreocupado, se regalando sob proteção paterna. A mãe onde estaria? Provavelmente ocupava com suas carnes a mesa de outro caçador. Martinho abaixou a espingarda e resolveu poupar o pai. Um filhote sem mãe tem um pai que o alimente, mas sem o macho para protegê-lo como sobreviveria? Já pensou? O filho com o pai preso e o padrinho morto? Melhor matar a mãe... Foi a última caçada do músico, neste dia guardou a arma no armário de roupas e lá ela ficou, esperando que a ferrugem acabasse por travá-la. Que nada, não há ferrugem que trave pensamento ruim!

                 
O barbeiro carregou a arma e alcançou a sala, à porta da cozinha posicionou a espingarda no ombro, chamou a mulher pelo nome e, quando ela se virou, fechou os olhos e descarregou. Não abriu nem quando ouviu o grito da mulher e só os descerrou quando alcançou a rua. Vizinhos aos gritos invadiam a casa e Martinho da Tuba caminhava, a culatra se arrastava produzindo estranho ruído no contato com o asfalto. Guardou na memória, o caçador, a imagem inexistente da esposa atingida: “Uma pobre avezinha com o peito aberto por uma estilingada”.

                 
Quem é que não sabe o que a dúvida faz na cabeça de um homem bom, como o nosso Martinho Barbeiro? Eu sei e conto: é como uma abelha que invade a cabeça do pobre e fica zunindo, zunindo, e o barulho fica mais alto à noite. Quando as outras cabeças da cidade dormem em paz, a cabeça em questão não prega o olho. E a dúvida dá cria! Logo, logo, a cabeça do coitado é um grande enxame e não tem mais como dar jeito. É uma zoeira só e qualquer remédio tem  efeito de veneno. Não! Não é para desculpar o Martinho. É só para provar que desconfiança tem que ser esclarecida de primeira. Mata-se o bicho no ninho...

                  
Martinho herdou do pai a barbearia, a tuba e a espingarda de caça, claro. Sempre foi um menino alegre e brincalhão. E assim cresceu, entre a navalha e a tuba. A opinião dos cidadãos do pequeno município: “Quem senta na cadeira do Martinho, chega triste e sai feliz”. O barbeiro é bom de prosa e sempre tem uma anedota na ponta da língua. A barbearia do homem é ponto de encontro de políticos, rábulas, lavradores e até o padre passa por lá, ao menos uma vez por semana. O pároco garante que a cadeira do Martinho é o melhor confessionário da cidade. Ainda ontem o religioso lá esteve e até estranhou ver o bonachão assim meio calado, chegou a oferecer os ouvidos e conselhos. O barbeiro nem respondeu, mudo estava e mudo ficou.

                 
Martinho da Tuba suava muito e a causa não era o sol, nem o peso da espingarda. Lembrança dá suadouro? No barbeiro deu. 

                 
A barbearia se localiza em ponto privilegiado: na praça central, em frente à igreja e ao lado da loja de bichos e rações do compadre. Amigos de infância, cresceram juntos. O compadre enviuvou há alguns anos, uma doença ruim deixou a pobre da menina sem mãe. Foi pai e mãe a um só tempo. O amigo, com o passar dos anos, tornou-se uma espécie de curandeiro de bichos. Tratava de animais domésticos e ainda atendia cavalos, vacas, e o que mais aparecesse. Quando do seu casamento, Martinho ouviu do amigo o conselho sinistro: “Não case com mulher assim tão magra, é ruim para tirar cria”. Ô boca tem o compadre! Não é que a mulher, a esmirrada, a ossuda, não engravidava por nada nesse mundo? Martinho procurou os melhores médicos e nada. Apelou para orações e novenas. Certa vez procurou uma bruxa, fez os trabalhos mandados e nunquinha da magrela engordar. Astrologia não resultou em coisa nenhuma, lua crescente e nada, lua nova também, na cheia não funcionou e na minguante é que não podia dar nada. Desistiu e já pensava em adoção quando o compadre, o curandeiro dos bichos, apareceu com uma garrafada de gosto ruim: “Tiro e queda, Martinho. É só a mulher beber olhando para as estrelas, eu mesmo preparei”. Claro que o homem da tuba não acreditou, mas fez a mulher beber. E não é que deu certo? Um mês depois de engolir a gosma engarrafada, a esposa anunciava a gravidez. Primeira abelha se instalando na cabeça oca do Martinho...

                  
O menino nasceu forte e bonito, num domingo. Enquanto o músico se esmerava em soprar sua tuba, ouviu pela primeira vez o grito de algum gaiato: “TEM GATO NA TUUUUUUBA!”. Abandonou o instrumento e correu para a maternidade. No dia do batismo o amigo se tornou compadre, o álbum de fotografias mostra que o padrinho sorria mais do que os pais... Martinho já tinha para quem deixar a tuba e a navalha. O garoto ficava mais tempo na barbearia do que em casa, Martinho instalara um berço e se desdobrava entre navalha e mamadeira. O menino mal começou a gatinhar e já ganhava a calçada, rumo à loja do padrinho onde brincava com a menina e os bichos. Adolescente, o filho do barbeiro começou a trabalhar com o padrinho e, em pouco tempo já ajudava na feitura de remédios e, para desespero do barbeiro, até consultava cavalos e vacas. Martinho, navalha em punho, quase arranca uma orelha do padre: “O menino nasceu para ser veterinário”. Olha aí outra abelha zunindo!

                 
Quando passou em frente à igreja, Martinho levantou os olhos, alguns metros o separavam da delegacia, já passara pela barbearia e pela loja de bichos. Malditos bichos! O barbeiro até que gostou quando o menino foi visto passeando de mãos dadas com a menina do compadre. Tinham quase a mesma idade, cresceram juntos em meio aos bichos da loja, nada mais natural que começassem um namoro. Quando a notícia alcançou os ouvidos da mulher foi um pampeiro danado, a magrinha que nunca levantara a voz parecia um gigante aos gritos com o menino. Pôs-se a chorar e lágrimas de mãe conseguem tudo. Tanto fez que o casalzinho separou-se. O compadre? Apoiou a comadre: “Que estudem antes de namorar. Depois da faculdade, quem sabe?”. Pois agora veio a faculdade, o garoto vai se tornar veterinário e foi comemorar o sucesso no vestibular com o padrinho. Durante toda a noite bebeu e farreou com o compadre, enquanto o pai não conseguia dormir e enlouquecia com suas abelhas. Olha o enxame, prontinho! 

                 
Martinho atravessou a praça, olhou para o coreto e não viu seu instrumento. Lembrou-se do nascimento do menino e do grito do até agora desconhecido: “TEM GATO NA TUUUUBA”. Queria, alguém, avisá-lo de algo? Dezoito anos se passaram e não conseguiu, até hoje, reconhecer a voz. Quando tocava a última música, ouviu o mesmo grito. Não viu quem foi, porém seu ouvido de músico não se engana: “É o sustenido do compadre” Foi a gota d’água ou a abelha rainha?

                  
O delegado, seu freguês favorito, esperava à porta:

                  -Martinho, meu barbeiro. Veio entregar a espingarda? Faz bem, meu amigo, armas velhas são mais perigosas. Entre, vamos à minha sala.
O barbeiro adentrou a sala com o braço do delegado nos ombros. Espantado, deixou-se cair na cadeira ao ver o filho, a mulher, o compadre e a tuba. O filho foi o primeiro a falar.

                  -Papai, já expliquei tudo ao doutor. Esse negócio de limpar arma carregada dá nisso. Mamãe até desmaiou com o susto!

Martinho levantou-se e olhou para o compadre, pálido o homem tremia. A mulher, serena e sorridente o abraçou:

                  -Vamos para casa, querido, preparei o frango do jeito que você gosta. Ah... convidei o compadre para o almoço, o esfomeado aceitou na hora!

                 
Martinho, o barbeiro, saiu abraçado com sua mulher e com a tuba. Não sei dizer se tirou um cochilo depois do almoço.