Martinho da Tuba, ou Martinho
Barbeiro, atravessou toda a cidade carregando a velha espingarda. Vestia,
ainda, a gloriosa farda da Banda Municipal. Segurava a arma com uma das mãos,
pelo cano, e a arrastava como se quisesse desintegrá-la pouco a pouco. Olhava
para baixo e do chão não desviou o olhar nem quando passou mulher bonita. Falar
não falava e só se ouvia um burburinho oriundo do grupo de curiosos que o
seguiam.
Era domingo, meio-dia, tinha
sono e não era por dormir tarde. Durante todo o sábado trabalhou muito, como
sempre, munido de tesoura e navalha. E ouvido. Martinho perguntou ao filho,
logo após o serviço: “Sabe qual a ferramenta principal de um barbeiro?”. Acertou quem respondeu: “o ouvido”. Martinho jantou e se recolheu ao quarto,
queria dormir e entrar em um estado de não pensar. Errou: a cama parecia de
madeira dura e o travesseiro era de pura pedra. Levantou-se muito cedo e
enquanto saía o filho chegava: “Fui comemorar, pai. Eu e o padrinho”. Martinho
da Tuba seguiu com seu instrumento rumo ao coreto e tocou como nunca. Depois de
muitas marchas e dobrados, quando a última música terminava, um não-sei-quem
gritou: “TEM GATO NA TUUUUUBA”. O músico acabou de tocar a peça, depositou o
velho instrumento no chão e saiu sem se despedir. Os colegas de banda bem que
estranharam, afinal o barbeiro nunca se separava da tuba, limpava e lustrava o
instrumento todos os dias. A tuba brilhava, solitária, ao sol do meio dia...
Ao chegar à casa viu a mulher
na cozinha. A figura magra dispensava toda a atenção às panelas fumegantes, nem
percebeu a chegada do marido. Fazia tudo em silêncio, com pena de acordar o
menino. Martinho pensava no garoto enquanto se dirigia ao quarto. Por que
comemorar com o padrinho? Desaforo, ou o que? Trabalhou duro para pagar os
estudos do menino. E ainda trabalhava! E não é que quando o danado consegue
passar no vestibular e realizar o grande sonho de estudar medicina veterinária,
esquece o próprio pai e vai à farra com o compadre? Martinho ajeitou a cadeira,
nela subiu e retirou a velha espingarda de caça do armário.
A arma fora do seu pai,
caçaram juntos muitas vezes. Os tempos mudam e já não se caça mais. O barbeiro,
após a morte do pai, ainda tentou traquejar algum animal. Foi à caça, pela
última vez, mais por precisar ficar só e por os pensamentos em ordem. Noite de
lua cheia, empoleirado em galho grosso, a poucos metros do bebedouro, só
pensava em acabar com a vida do compadre. O pensamento puxava o gatilho e os
olhos viam o homem caído, quando o ruído vindo do mato despertou o instinto do
caçador. O veado abaixara a cabeça, pronto a sorver a água do bebedouro e levar
o tiro mortal entre as orelhas. Isso só não aconteceu porque Martinho da Tuba
percebeu uma figura menor, ao lado do macho. Um filhote, despreocupado, se
regalando sob proteção paterna. A mãe onde estaria? Provavelmente ocupava com
suas carnes a mesa de outro caçador. Martinho abaixou a espingarda e resolveu
poupar o pai. Um filhote sem mãe tem um pai que o alimente, mas sem o macho
para protegê-lo como sobreviveria? Já pensou? O filho com o pai preso e o
padrinho morto? Melhor matar a mãe... Foi a última caçada do músico, neste dia
guardou a arma no armário de roupas e lá ela ficou, esperando que a ferrugem
acabasse por travá-la. Que nada, não há ferrugem que trave pensamento ruim!
O barbeiro carregou a arma e
alcançou a sala, à porta da cozinha posicionou a espingarda no ombro, chamou a
mulher pelo nome e, quando ela se virou, fechou os olhos e descarregou. Não
abriu nem quando ouviu o grito da mulher e só os descerrou quando alcançou a
rua. Vizinhos aos gritos invadiam a casa e Martinho da Tuba caminhava, a
culatra se arrastava produzindo estranho ruído no contato com o asfalto.
Guardou na memória, o caçador, a imagem inexistente da esposa atingida: “Uma
pobre avezinha com o peito aberto por uma estilingada”.
Quem é que não sabe o que a
dúvida faz na cabeça de um homem bom, como o nosso Martinho Barbeiro? Eu sei e
conto: é como uma abelha que invade a cabeça do pobre e fica zunindo, zunindo,
e o barulho fica mais alto à noite. Quando as outras cabeças da cidade dormem
em paz, a cabeça em questão não prega o olho. E a dúvida dá cria! Logo, logo, a
cabeça do coitado é um grande enxame e não tem mais como dar jeito. É uma
zoeira só e qualquer remédio tem efeito
de veneno. Não! Não é para desculpar o Martinho. É só para provar que
desconfiança tem que ser esclarecida de primeira. Mata-se o bicho no ninho...
Martinho herdou do pai a barbearia, a
tuba e a espingarda de caça, claro. Sempre foi um menino alegre e brincalhão. E
assim cresceu, entre a navalha e a tuba. A opinião dos cidadãos do pequeno
município: “Quem senta na cadeira do Martinho, chega triste e sai feliz”. O
barbeiro é bom de prosa e sempre tem uma anedota na ponta da língua. A
barbearia do homem é ponto de encontro de políticos, rábulas, lavradores e até
o padre passa por lá, ao menos uma vez por semana. O pároco garante que a
cadeira do Martinho é o melhor confessionário da cidade. Ainda ontem o
religioso lá esteve e até estranhou ver o bonachão assim meio calado, chegou a
oferecer os ouvidos e conselhos. O barbeiro nem respondeu, mudo estava e mudo
ficou.
Martinho da Tuba suava muito
e a causa não era o sol, nem o peso da espingarda. Lembrança dá suadouro? No
barbeiro deu.
A barbearia se localiza em
ponto privilegiado: na praça central, em frente à igreja e ao lado da loja de
bichos e rações do compadre. Amigos de infância, cresceram juntos. O compadre
enviuvou há alguns anos, uma doença ruim deixou a pobre da menina sem mãe. Foi
pai e mãe a um só tempo. O amigo, com o passar dos anos, tornou-se uma espécie
de curandeiro de bichos. Tratava de animais domésticos e ainda atendia cavalos,
vacas, e o que mais aparecesse. Quando do seu casamento, Martinho ouviu do
amigo o conselho sinistro: “Não case com mulher assim tão magra, é ruim para
tirar cria”. Ô boca tem o compadre! Não é que a mulher, a esmirrada, a ossuda,
não engravidava por nada nesse mundo? Martinho procurou os melhores médicos e
nada. Apelou para orações e novenas. Certa vez procurou uma bruxa, fez os
trabalhos mandados e nunquinha da magrela engordar. Astrologia não resultou em
coisa nenhuma, lua crescente e nada, lua nova também, na cheia não funcionou e
na minguante é que não podia dar nada. Desistiu e já pensava em adoção quando o
compadre, o curandeiro dos bichos, apareceu com uma garrafada de gosto ruim:
“Tiro e queda, Martinho. É só a mulher beber olhando para as estrelas, eu mesmo
preparei”. Claro que o homem da tuba não acreditou, mas fez a mulher beber. E
não é que deu certo? Um mês depois de engolir a gosma engarrafada, a esposa
anunciava a gravidez. Primeira abelha se instalando na cabeça oca do
Martinho...
O menino nasceu forte e bonito, num domingo.
Enquanto o músico se esmerava em soprar sua tuba, ouviu pela primeira vez o
grito de algum gaiato: “TEM GATO NA TUUUUUUBA!”. Abandonou o instrumento e
correu para a maternidade. No dia do batismo o amigo se tornou compadre, o
álbum de fotografias mostra que o padrinho sorria mais do que os pais...
Martinho já tinha para quem deixar a tuba e a navalha. O garoto ficava mais
tempo na barbearia do que em casa, Martinho instalara um berço e se desdobrava
entre navalha e mamadeira. O menino mal começou a gatinhar e já ganhava a
calçada, rumo à loja do padrinho onde brincava com a menina e os bichos.
Adolescente, o filho do barbeiro começou a trabalhar com o padrinho e, em pouco
tempo já ajudava na feitura de remédios e, para desespero do barbeiro, até
consultava cavalos e vacas. Martinho, navalha em punho, quase arranca uma
orelha do padre: “O menino nasceu para ser veterinário”. Olha aí outra abelha
zunindo!
Quando passou em frente à
igreja, Martinho levantou os olhos, alguns metros o separavam da delegacia, já
passara pela barbearia e pela loja de bichos. Malditos bichos! O barbeiro até
que gostou quando o menino foi visto passeando de mãos dadas com a menina do
compadre. Tinham quase a mesma idade, cresceram juntos em meio aos bichos da loja,
nada mais natural que começassem um namoro. Quando a notícia alcançou os
ouvidos da mulher foi um pampeiro danado, a magrinha que nunca levantara a voz
parecia um gigante aos gritos com o menino. Pôs-se a chorar e lágrimas de mãe
conseguem tudo. Tanto fez que o casalzinho separou-se. O compadre? Apoiou a comadre:
“Que estudem antes de namorar. Depois da faculdade, quem sabe?”. Pois agora
veio a faculdade, o garoto vai se tornar veterinário e foi comemorar o sucesso
no vestibular com o padrinho. Durante toda a noite bebeu e farreou com o
compadre, enquanto o pai não conseguia dormir e enlouquecia com suas abelhas.
Olha o enxame, prontinho!
Martinho atravessou a praça,
olhou para o coreto e não viu seu instrumento. Lembrou-se do nascimento do
menino e do grito do até agora desconhecido: “TEM GATO NA TUUUUBA”. Queria,
alguém, avisá-lo de algo? Dezoito anos se passaram e não conseguiu, até hoje,
reconhecer a voz. Quando tocava a última música, ouviu o mesmo grito. Não viu
quem foi, porém seu ouvido de músico não se engana: “É o sustenido do compadre”
Foi a gota d’água ou a abelha rainha?
O delegado, seu freguês favorito,
esperava à porta:
-Martinho, meu barbeiro. Veio
entregar a espingarda? Faz bem, meu amigo, armas velhas são mais perigosas.
Entre, vamos à minha sala.
O barbeiro adentrou a sala com
o braço do delegado nos ombros. Espantado, deixou-se cair na cadeira ao ver o
filho, a mulher, o compadre e a tuba. O filho foi o primeiro a falar.
-Papai, já expliquei tudo ao
doutor. Esse negócio de limpar arma carregada dá nisso. Mamãe até desmaiou com
o susto!
Martinho levantou-se e olhou
para o compadre, pálido o homem tremia. A mulher, serena e sorridente o
abraçou:
-Vamos para casa, querido,
preparei o frango do jeito que você gosta. Ah... convidei o compadre para o
almoço, o esfomeado aceitou na hora!
Martinho, o barbeiro, saiu
abraçado com sua mulher e com a tuba. Não sei dizer se tirou um cochilo depois
do almoço.