MENTIRA
25/09/2020
16/08/2020
NEGASSONHO
12/08/2020
Nenhum dia ou hora, com o exagero dos minutos, deixou de pensar nela.
Dia de sol, frio, chuva, tanto faz. Era um
tanto-faz irritante.
No almoço, ela.
No jantar, ela. Antes e depois, ela. Durante o que fosse, ela.
Desviava os caminhos, nada de passar aonde antes
seguia acompanhado.
Nada de sentar às mesmas mesas nos restaurantes
conhecidos.
Nada de nada e nada de esquecer.
Noite e dia.
Escreveu um diário e o diário era dela.
Sempre tem um amigo ou amiga aconselhando.
Deixa disso, esqueça.
Não posso, tento com todas as minhas forças. Não
posso.
Tente, amanhã naquele bar de antes.
Naquele?
É, precisa retomar sua vida, seus amigos.
Ela entrou e
um qualquer fez que não viu o outro qualquer.
É ela. Você não viu?
Acho que sim...
Va lá, tem cadeira vazia.
Não posso.
Covarde!
Covarde não sou.
Então vai.
Vou.
Boa noite.
Oi, que surpresa, boa noite. Sente-se.
Você está bem.
Você também, aliás é o mesmo de sempre.
Obrigado, você mudou.
Notou?
Sim, cadê o cabelo que eu gostava?
Cortei.
Muito curto... e tingiu.
Fiquei melhor?
Não se melhora o que era melhor.
Sempre você!
E esses brincos? Ficaram bem.
Resolvi usar.
Presente meu, mas você não gostava...
Agora gosto...
Seus olhos estão mais... não sei...
Claros. São lentes.
Ah...
Não gosta?
Gostei do vestido.
Adoro vermelho.
Gostava de amarelo.
Mudei. E você?
Continuo o mesmo.
Andei pensando... sabe... me dá outra chance?
O quê?
Você entendeu... podemos recomeçar.
Vou dormir.
Como?
Dormir... enfim... vou dormir.
Boa noite.
Boa noite.
10/08/2020
NUVEM
05/04/2013
O SUSTENIDO
23/12/2012
ESPADA-DE-SÃO-JORGE
Ele não fez cara alguma:
Olhos suplicantes e lábios úmidos:
Jogou um dinheiro na penteadeira, antes da última sílaba do agradecimento já ganhava a porta de saída. Nada melhor do que o tempo para arrancar o sorriso da cara dessa gente de viração. O tempo tudo murcha, flor hoje adornando o vaso e amanhã um amarfanhado no lixo da cozinha. Com ele, não! Cada mulher em seu lugar. Não é assim com a sua? Nada melhor do que chegar em casa e provar sopa quente e vestir roupa limpa. Em casa tudo é livre da estrumeira das ruas. Quase tudo, ao menos a sopa e a roupa...
Não fosse o tempo, o impiedoso, a florescer as imperfeições humanas... a perverter a consciência, relaxar a moral e distrair a beleza distribuindo rugas e cabelos brancos... Não é também assim em casa? Tanto é assim que precisa, o filósofo de garrafa, refugiar-se do mundo definhador no frescor da outra e afogar-se em goles que têm o sagrado poder de rejuvenescer o corpo e, em especial, os olhos e a língua. Mas hoje seria diferente, nada de álcool a embelezar o feio.
Têm momentos em que a realidade pega o sujeito de uma maneira que não há como fugir. Nem voando nas asas da ficção. E não é que a sujeitinha teve a coragem de oferecer acolhida? A mulher-de-rua, dama, bruaca, marafaia: “Com a menina dou um jeito, não me falta carinho com crianças”. Imagine quem quiser: minha menina, a santinha, ressonando nos braços da quenga. Coragem tem essa gente!
A água do banho leva ao ralo o cheiro da outra, a roupa limpa encobre marcas que nem lembra como surgiram. Desce, pisando leve, os degraus que chegam à sala, atravessa o cômodo e lá está a mulher sentada à mesa. Ainda em silêncio, acomoda-se e começa a sorver o líquido grosso e pastoso:
A colher parou no meio do caminho e voltou ao prato, quis falar mas sentiu-se culpado. O silêncio do réu é confissão. Os olhos do criminoso confesso percorrem a cozinha, tudo parece velho: fogão, panelas, armários, mesas e cadeiras. A voz da mulher assemelha-se a um som fugidio e rouco de gramofone. Rugas são a própria etimologia da palavra: vielas vindas do infinito do rosto e terminando nos olhos cansados. Mais acima, na testa, ruas que não levam a lugar nenhum. Fios de cabelos que teimam em continuar claros, resistentes à mais escura das tinturas. Lábios secos e descoloridos a produzirem o som de disco antigo.
Agora os olhos vasculham o corpo da mulher e se deparam com o vestido que cobre braços e esconde os seios, fechando-se à custa de grandes botões que chegam à altura do pescoço. A roupa cinza, monocromática, lembra um falso crepúsculo no meio de um dia claro.
Empurrou o prato de sopa, a pasta verde tingiu a toalha:
Alcançou o portão, passou pela planta e soltou o que pensava ser o pior dos xingamentos:
Em pé, da porta da cozinha, a mulher ouviu calada. Até hoje jura que o marido ofendeu sua plantinha e esta, se falasse, negaria, debochando: “Foi para você, boba...”.
Voltou cambaleando. Se alguém viu, afirma que cantava uma valsa antiga. Ao custo que os bêbados pagam, conseguiu abrir o portão, olhou para o céu e a lua cheia prateava o caminho até a janela do quarto. Ele pensa que vislumbrou um vulto se furtando por trás da cortina, ou pode ser que viu mesmo. Parou na entrada da casa e, sem tirar os olhos da janela, urinou um liquido amarelo e brilhante por todas as folhas da planta. Ria alto soltando a alegria embriagada.
Subiu ao quarto, ainda rindo, jogou-se à cama. A mulher, de costas e olhos abertos, custou a entender o balbuciar:
Quando o despertador anunciou, feito um galo antigo, que a vida continuava sua caminhada rumo a não se sabe onde nem aonde, percebeu que melhor seria não ter acordado. Deu de cara com a mulher sentada a poucos metros da cama. Usava, a danada, um vestido decotado, curto e estampado com flores de todos os matizes. O cabelo, de um negror extremo, descia ao lado do rosto borrado com uma espécie de massa marrom-escuro que se espalhava pelo pescoço e afundava em direção aos seios. Melhor que dormisse profundamente a ver, no meio de tal imagem, a fenda vermelha que enodoava o que, até ontem, era uma boca de lábios secos. Nem percebeu que o buraco vermelho sorria. Melhor dizer que escarnecia. Alguém já teve pesadelo com o demônio vestido de palhaço? Igualzinho!
Esfregou os olhos, como a querer, de fato, acordar. De imediato sentiu um ardor terrível acompanhado de coceira. Quanto mais coçava, mais ardia, os olhos e as mãos. Passou os dedos pelo rosto e percebeu feridas como se fossem queimaduras. Desceu as mãos pelo corpo e descobriu a nudez e, junto com ela as coceiras e queimaduras, no peito, barriga, virilhas, pernas. Sentou-se, assustado, à beira da cama.. Conseguiu abrir novamente os olhos e viu o corpo tomado por feridas. As palmas das mãos traziam uma gosma branca vinda de onde quer que tocasse. O diabo nem acudia, sorria vendo o homem a se coçar em desespero. A voz de disco riscado:
Fez que sim com a cabeça. Quis falar e não conseguiu, a língua parecia presa por uma meleca que escorria pelos cantos da boca. A cama, bem como o chão, estava tomada por folhas amassadas de espada-de-são-jorge.
A maldita levantou-se, foi ao banheiro e abriu o chuveiro. Jogou sobre a cama um pote de pomada e antes que o marido alcançasse a água salvadora, foi embora. Carregou a mala em silêncio.
Alguém viu alguma lágrima no rosto da estranha criatura?
10/08/2012
VENENO
Levantou-se e a cabeça quase estoura, sentou-se na cama: “que dia é hoje?”. Era sábado e tentou reconstruir a sexta-feira. Só se lembrava da visita do corretor de imóveis: um homenzinho de bigode enfiado em um terno largo, um enorme nariz cheirando tudo e servindo de apoio para os óculos de lentes verdes.
-Quer vender? Quer? Então pinte essas paredes com tinta bem grossa. Bem grossa, ouviu? Cubra esses garranchos e não se esqueça de dar um jeito nesse cheiro de não-sei-o-que.
Mal sabia, aquele anão de terno, cego e narigudo, que aqueles gar-ranchos são o nome dela, com sobrenome e tudo, o cheiro de não-sei-o-que é o perfume da traidora, da infiel, aquela uma, ingrata e safada, falsa, tão falsa quanto o piercing de prata no narizinho “que mandei por na véspera do abandono e infortúnio”. Ai, a boca de carmim:
-Não ficou uma gracinha, querido?
Ficou! Nem na pinacoteca viu narizinho assim. Uma graça!
O que mais para se lembrar da sexta-feira? Almoçou? Jantou? Tomou banho? Não sabe mais nada da sexta, nem da quinta, menos ainda da quarta. Sabe do estômago queimando, da cabeça querendo pular pela janela, sabe do perfume que invadiu o apartamento quando ela se foi. Uma semana e o odor ainda impregnava toda a casa. Acendia o fogão e vinha o cheiro, pegava uma panela e o aroma se alastrava, sentava à mesa e Deus me livre, abria a geladeira e cruz credo. Na sala ligou o ventilador, resfriou-se e espirrou e tossiu. O perfume nocivo brotava das paredes e do chão, ligava a televisão e a moça do tempo exalava o odor maldito. Ô praga de espólio que a zinha legou! Nem o narigão do baixinho para acabar com o cheiro! No quarto, destruiu o travesseiro, queimou o lençol e o colchão e algum vizinho gritou “fogo”. Apareceram baldes de água e até uma mangueira. Ao síndico jurou que foi acidente: “ o cigarro adormeceu nos meus dedos”. O homem achou bom que o apartamento estivesse à venda. Comprou cama, colchão, lençol e travesseiro ( e não é que vieram com o mesmo cheiro? ).
Olhou o relógio, onze horas e o fogo do estômago ardia na boca, escovou os dentes e barbeou-se. No armário do banheiro achou o frasco de perfume, jogou no ralo a saudade dela. Tomou um banho frio e saiu prometendo a si mesmo pintar as paredes e contratar uma faxineira.
No quarto ou quinto copo de conhaque os ponteiros do relógio tremiam marcando duas horas. Sem almoço e sem fome o estômago não mais queimava, o garçom tinha a cara feia e servia a quinta ou sexta dose. A ideia de vender o apartamento foi dela, queria um maior: “com mais espaço para as crianças, meu amor, ainda vamos ter. Não vamos?”. Procurou imobiliária, discutiu preço, fez tudo sozinha, a megera. Respirou fundo, fedia a conhaque barato, o garçom parece um rato e enchia seu copo, melhor o cheiro da bebida do que o perfume daquela uma, o garçom cheira como ela...parece o perfume ...
Jogou o dinheiro na mesa e saltou para a rua, ainda ouviu o feioso gritar “olha o troco”, encostou-se à parede e saiu cambaleando, vez ou outra um muro ou uma porta servia de apoio. Sacou o lenço e grudou no nariz, mesma coisa que não fizesse nada, o cheiro era ainda mais forte. Virou-se à direita, inalou fortemente e a morena surgiu: os olhos azuis iluminavam o narizinho e o piercing prateado (uma graça), a boca de carmim (ai), o pescoço fino e cabelos curtos, orelhinhas de tantos segredos e mordidelas decoradas por brinquinhos (diamantes adornando diamantes). Os seios pequenos cresciam no vestido justo (presente de aniversário). “Alguém pensa que ela me viu? Se viu fez que não viu, a dissimulada”. Os pezinhos de anjo flutuavam nas sandálias douradas, o vestido curto mostrava a tatuagem na coxa (era meu nome e agora não sei), no tornozelo a correntinha de ouro (“Compra? Vai ficar tão bonitinho”). Seguiu a infiel, a ingrata, com ganas de dar uns tapas, umas mordidas e mil beijos. Na mão esquerda viu o anel de esmeralda (Esmeralda é o nome da mãe dela, “mamãe gosta tanto de você”, ainda pago o carnê) e na direita a bolsinha balançava e tocava levemente seu corpo.
Os pés se confundiam e tropeçavam seguindo a maldita, quase que atropela a ingrata quando ela para e beija o homem que a esperava, um homenzinho de terno largo, bigode, óculos de lentes verdes e nariz digno de um elefante. Tenta se apoiar em uma parede que não existe e se vê andando em ziguezague dentro de uma farmácia, recompõe-se o tanto que pode, solta dois botões da camisa, é difícil respirar, ainda sente o cheiro infernal, o conhaque queima o estômago e o fogo sobe pela gar-ganta. No balcão aponta a prateleira, a voz embarga. O atendente é solí-cito:
-Este?
Faz que não e aponta mais à esquerda.
-Este?
Faz sinal que sim, joga o dinheiro e toma da mão do vendedor. Tem pressa e abre o frasco com raiva. Bebe num gole só.
Porque o frasco caiu se não abriu a mão? E o vendedor, porque está assustado ao lado do bêbado deitado? “Ela nem me viu, se viu... sei lá, preciso levantar, primeiro tenho que mexer uma perna, não sinto as mãos, o vendedor mexe as mãos, anda e fala, daqui de baixo parece tão fácil, o estômago não queima, o garçom tem uma cicatriz abaixo do olho direito, peço socorro ou fecho os olhos, aquele de branco parece médico, venderei o apartamento, tenho um tubo na garganta, alguém me espetou o braço, vou mudar de imobiliária, o que o baixinho tem que eu não tenho, queria falar alguma coisa, olha o de branco falando com o vendedor”.
-Sabe o que ele bebeu?
-Seiva de Alfazema, doutor. Frasco grande.