25/09/2020

    MENTIRA

Maria não mente.
Tem certeza?
Certeza ninguém tem.
Imagine o João que imaginava que a mulher nunca mentira.
Ela dizia e jurava de pés e dedos juntos.
O João, paladino da verdade.
Não foi ela que disse que a mentira corrói o amor?
Destroça, trucida, não sei mais o quê, este nobre sentimento.
Maria, quantos amores já teve?
Nenhum como o seu.
Maria, já me traiu?
Magina.
Maria, ainda me ama?
Como nunca.
Onde esteve, Maria?
Com você no coração.
Por que demorou?
João, amor não tem hora nem pressa, não tem tempo medido com ponteiros.
Amor é a paz dos segundos que não passam.
E lá ia, o João, ao trabalho, aos ponteiros que não param de passar.
Maria não mente.
João sou seu amigo, toda mulher mente, homens mentem.
Maria não. Como pode o pescoço esguio mentir?
Inverdade na boca de coração colorida em carmim?
A nuca e os arrepios mentem?
Só nas cabeças sujas.
Cabeças sujas criam imagens sujas.
E não é que o João descobriu uma mentira?
Por que, Maria?
Não minto João, nunca menti, você mente a si mesmo.

Comentários


16/08/2020

NEGASSONHO

Não! Não sonhei com você!
Sei que vai estranhar as exclamações, como sempre fez. Vai entrar na conversa dos críticos literários que condenam os sinais. Nossas conversas sempre tiveram exclamações, interrogações, parênteses, dois pontos e tudo mais que nossa linguagem proporcionou. Lembre disso.
Mas, voltando ao tema, desesclamando, afirmo a bem da verdade que não sonhei com você. Passei longe disso.
Passei longe dos seus lábios, língua, olhos, orelhas, pescoço, saboneteiras e não desço mais por pudor.
Não meu pudor, mas o pudor dos que podem, um dia, lerem essas desinterrogações.
Não sonhei com seu vestido e nem com sua nudez.
Não sonhei com sua blusa de botões abertos. Era rosa? Cinza? Não sei. Não sonhei!
Não sonhei com o que vi entre os botões, mas se fosse poeta escreveria versos sobre o que se vê entre os botões.
Não! Não sonhei com você! Mas, quem dera? 

12/08/2020

 

 BOA NOITE

Nenhum dia ou hora, com  o exagero dos minutos, deixou de pensar nela.

Dia de sol, frio, chuva, tanto faz. Era um tanto-faz irritante.

No almoço, ela.  No jantar, ela. Antes e depois, ela. Durante o que fosse, ela.

Desviava os caminhos, nada de passar aonde antes seguia acompanhado.

Nada de sentar às mesmas mesas nos restaurantes conhecidos.

Nada de nada e nada de esquecer.

Noite e dia.

Escreveu um diário e o diário era dela.

Sempre tem um amigo ou amiga aconselhando.

Deixa disso, esqueça.

Não posso, tento com todas as minhas forças. Não posso.

Tente, amanhã naquele bar de antes.

Naquele?

É, precisa retomar sua vida, seus amigos.

Ela entrou  e um qualquer fez que não viu o outro qualquer.

É ela. Você não viu?

Acho que sim...

Va lá, tem cadeira vazia.

Não posso.

Covarde!

Covarde não sou.

Então vai.

Vou.

Boa noite.

Oi, que surpresa, boa noite. Sente-se.

Você está bem.

Você também, aliás é o mesmo de sempre.

Obrigado, você mudou.

Notou?

Sim, cadê o cabelo que eu gostava?

Cortei.

Muito curto... e tingiu.

Fiquei melhor?

Não se melhora o que era melhor.

Sempre você!

E esses brincos? Ficaram bem.

Resolvi usar.

Presente meu, mas você não gostava...

Agora gosto...

Seus olhos estão mais... não sei...

Claros. São lentes.

Ah...

Não gosta?

Gostei do vestido.

Adoro vermelho.

Gostava de amarelo.

Mudei. E você?

Continuo o mesmo.

Andei pensando... sabe... me dá outra chance?

O quê?

Você entendeu... podemos recomeçar.

Vou dormir.

Como?

Dormir... enfim... vou dormir.

Boa noite.

Boa noite.

 

 

 

 

 

 

 

10/08/2020

NUVEM

O João caminha diferente. Assim, ó: levanta os pés a parcos centímetros do chão. Sem vontade, quase se arrasta e ameaça tropeçar a cada acidente topográfico da calçada.
Até ontem não foi assim. Agora qualquer inseto, talvez uma joaninha, pode ser vítima de assassinato e, ao mesmo tempo, pode matar nosso João, ou pode ser uma tentativa de crime coletivo.
Antes, caminhava a passos lentos, é verdade, mas decisivos rumo ao bar. Todas as tardes. Bebia, mal conversava e saía.
Vem a passos arrastados, olha para o chão, quer desviar da joaninha e sente as pernas pesadas. Pensa. E que pensamento pode levar um homem a se arrastar pela calçada?
-Mulher!
Feito e dito: ela tem os olhos mais belos do mundo. Ai, suspira o João. E se arrasta, e a cada passo maldiz o olhar danado.
Sobre a boca não quer nem falar, ou pensar, ou misturar tudo e pensar e falar baixinho: tem um desenho de coração na boca. Suspira mais um ai e se arrasta, nem sabe mais se o destino é o bar ou a calçada. Ai.
Quem ousa dirigir alguma palavra ao João, sentado ali naquela mesa? Ninguém, nem o dono apresentou a conta atrasada. Uma dose, ou duas, o burburinho: alguém falou baixinho que os cotovelos doíam.
Um outro fez um sinal de "V" com os dedos, acima da cabeça.
João empurrava o copo, para frente e para trás, para os lados e depois virava na boca e alma doentes. Escravos-de-jó, foi o que lembrou.
Alguém comprou cigarros e sussurrou: “pobre homem... mulher danada”.
Ah, teve um outro que disse “melhor uma na mão que...”. Vaia surda e o bêbado se calou.
João pedia mais uma, com um gesto. Ah, nessas horas o silêncio fala.
O vestido branco surgiu como uma nuvem no céu escuro.
Os olhos mais belos e a boca de coração:
-O que faz aqui, João?
-Só bebendo.
-Tá triste?
-Acho que matei uma joaninha!

05/04/2013

O SUSTENIDO


Martinho da Tuba, ou Martinho Barbeiro, atravessou toda a cidade carregando a velha espingarda. Vestia, ainda, a gloriosa farda da Banda Municipal. Segurava a arma com uma das mãos, pelo cano, e a arrastava como se quisesse desintegrá-la pouco a pouco. Olhava para baixo e do chão não desviou o olhar nem quando passou mulher bonita. Falar não falava e só se ouvia um burburinho oriundo do grupo de curiosos que o seguiam. 

                 
Era domingo, meio-dia, tinha sono e não era por dormir tarde. Durante todo o sábado trabalhou muito, como sempre, munido de tesoura e navalha. E ouvido. Martinho perguntou ao filho, logo após o serviço: “Sabe qual a ferramenta principal de um barbeiro?”.  Acertou quem respondeu: “o ouvido”.  Martinho jantou e se recolheu ao quarto, queria dormir e entrar em um estado de não pensar. Errou: a cama parecia de madeira dura e o travesseiro era de pura pedra. Levantou-se muito cedo e enquanto saía o filho chegava: “Fui comemorar, pai. Eu e o padrinho”. Martinho da Tuba seguiu com seu instrumento rumo ao coreto e tocou como nunca. Depois de muitas marchas e dobrados, quando a última música terminava, um não-sei-quem gritou: “TEM GATO NA TUUUUUBA”. O músico acabou de tocar a peça, depositou o velho instrumento no chão e saiu sem se despedir. Os colegas de banda bem que estranharam, afinal o barbeiro nunca se separava da tuba, limpava e lustrava o instrumento todos os dias. A tuba brilhava, solitária, ao sol do meio dia...

                 
Ao chegar à casa viu a mulher na cozinha. A figura magra dispensava toda a atenção às panelas fumegantes, nem percebeu a chegada do marido. Fazia tudo em silêncio, com pena de acordar o menino. Martinho pensava no garoto enquanto se dirigia ao quarto. Por que comemorar com o padrinho? Desaforo, ou o que? Trabalhou duro para pagar os estudos do menino. E ainda trabalhava! E não é que quando o danado consegue passar no vestibular e realizar o grande sonho de estudar medicina veterinária, esquece o próprio pai e vai à farra com o compadre? Martinho ajeitou a cadeira, nela subiu e retirou a velha espingarda de caça do armário. 

                 
A arma fora do seu pai, caçaram juntos muitas vezes. Os tempos mudam e já não se caça mais. O barbeiro, após a morte do pai, ainda tentou traquejar algum animal. Foi à caça, pela última vez, mais por precisar ficar só e por os pensamentos em ordem. Noite de lua cheia, empoleirado em galho grosso, a poucos metros do bebedouro, só pensava em acabar com a vida do compadre. O pensamento puxava o gatilho e os olhos viam o homem caído, quando o ruído vindo do mato despertou o instinto do caçador. O veado abaixara a cabeça, pronto a sorver a água do bebedouro e levar o tiro mortal entre as orelhas. Isso só não aconteceu porque Martinho da Tuba percebeu uma figura menor, ao lado do macho. Um filhote, despreocupado, se regalando sob proteção paterna. A mãe onde estaria? Provavelmente ocupava com suas carnes a mesa de outro caçador. Martinho abaixou a espingarda e resolveu poupar o pai. Um filhote sem mãe tem um pai que o alimente, mas sem o macho para protegê-lo como sobreviveria? Já pensou? O filho com o pai preso e o padrinho morto? Melhor matar a mãe... Foi a última caçada do músico, neste dia guardou a arma no armário de roupas e lá ela ficou, esperando que a ferrugem acabasse por travá-la. Que nada, não há ferrugem que trave pensamento ruim!

                 
O barbeiro carregou a arma e alcançou a sala, à porta da cozinha posicionou a espingarda no ombro, chamou a mulher pelo nome e, quando ela se virou, fechou os olhos e descarregou. Não abriu nem quando ouviu o grito da mulher e só os descerrou quando alcançou a rua. Vizinhos aos gritos invadiam a casa e Martinho da Tuba caminhava, a culatra se arrastava produzindo estranho ruído no contato com o asfalto. Guardou na memória, o caçador, a imagem inexistente da esposa atingida: “Uma pobre avezinha com o peito aberto por uma estilingada”.

                 
Quem é que não sabe o que a dúvida faz na cabeça de um homem bom, como o nosso Martinho Barbeiro? Eu sei e conto: é como uma abelha que invade a cabeça do pobre e fica zunindo, zunindo, e o barulho fica mais alto à noite. Quando as outras cabeças da cidade dormem em paz, a cabeça em questão não prega o olho. E a dúvida dá cria! Logo, logo, a cabeça do coitado é um grande enxame e não tem mais como dar jeito. É uma zoeira só e qualquer remédio tem  efeito de veneno. Não! Não é para desculpar o Martinho. É só para provar que desconfiança tem que ser esclarecida de primeira. Mata-se o bicho no ninho...

                  
Martinho herdou do pai a barbearia, a tuba e a espingarda de caça, claro. Sempre foi um menino alegre e brincalhão. E assim cresceu, entre a navalha e a tuba. A opinião dos cidadãos do pequeno município: “Quem senta na cadeira do Martinho, chega triste e sai feliz”. O barbeiro é bom de prosa e sempre tem uma anedota na ponta da língua. A barbearia do homem é ponto de encontro de políticos, rábulas, lavradores e até o padre passa por lá, ao menos uma vez por semana. O pároco garante que a cadeira do Martinho é o melhor confessionário da cidade. Ainda ontem o religioso lá esteve e até estranhou ver o bonachão assim meio calado, chegou a oferecer os ouvidos e conselhos. O barbeiro nem respondeu, mudo estava e mudo ficou.

                 
Martinho da Tuba suava muito e a causa não era o sol, nem o peso da espingarda. Lembrança dá suadouro? No barbeiro deu. 

                 
A barbearia se localiza em ponto privilegiado: na praça central, em frente à igreja e ao lado da loja de bichos e rações do compadre. Amigos de infância, cresceram juntos. O compadre enviuvou há alguns anos, uma doença ruim deixou a pobre da menina sem mãe. Foi pai e mãe a um só tempo. O amigo, com o passar dos anos, tornou-se uma espécie de curandeiro de bichos. Tratava de animais domésticos e ainda atendia cavalos, vacas, e o que mais aparecesse. Quando do seu casamento, Martinho ouviu do amigo o conselho sinistro: “Não case com mulher assim tão magra, é ruim para tirar cria”. Ô boca tem o compadre! Não é que a mulher, a esmirrada, a ossuda, não engravidava por nada nesse mundo? Martinho procurou os melhores médicos e nada. Apelou para orações e novenas. Certa vez procurou uma bruxa, fez os trabalhos mandados e nunquinha da magrela engordar. Astrologia não resultou em coisa nenhuma, lua crescente e nada, lua nova também, na cheia não funcionou e na minguante é que não podia dar nada. Desistiu e já pensava em adoção quando o compadre, o curandeiro dos bichos, apareceu com uma garrafada de gosto ruim: “Tiro e queda, Martinho. É só a mulher beber olhando para as estrelas, eu mesmo preparei”. Claro que o homem da tuba não acreditou, mas fez a mulher beber. E não é que deu certo? Um mês depois de engolir a gosma engarrafada, a esposa anunciava a gravidez. Primeira abelha se instalando na cabeça oca do Martinho...

                  
O menino nasceu forte e bonito, num domingo. Enquanto o músico se esmerava em soprar sua tuba, ouviu pela primeira vez o grito de algum gaiato: “TEM GATO NA TUUUUUUBA!”. Abandonou o instrumento e correu para a maternidade. No dia do batismo o amigo se tornou compadre, o álbum de fotografias mostra que o padrinho sorria mais do que os pais... Martinho já tinha para quem deixar a tuba e a navalha. O garoto ficava mais tempo na barbearia do que em casa, Martinho instalara um berço e se desdobrava entre navalha e mamadeira. O menino mal começou a gatinhar e já ganhava a calçada, rumo à loja do padrinho onde brincava com a menina e os bichos. Adolescente, o filho do barbeiro começou a trabalhar com o padrinho e, em pouco tempo já ajudava na feitura de remédios e, para desespero do barbeiro, até consultava cavalos e vacas. Martinho, navalha em punho, quase arranca uma orelha do padre: “O menino nasceu para ser veterinário”. Olha aí outra abelha zunindo!

                 
Quando passou em frente à igreja, Martinho levantou os olhos, alguns metros o separavam da delegacia, já passara pela barbearia e pela loja de bichos. Malditos bichos! O barbeiro até que gostou quando o menino foi visto passeando de mãos dadas com a menina do compadre. Tinham quase a mesma idade, cresceram juntos em meio aos bichos da loja, nada mais natural que começassem um namoro. Quando a notícia alcançou os ouvidos da mulher foi um pampeiro danado, a magrinha que nunca levantara a voz parecia um gigante aos gritos com o menino. Pôs-se a chorar e lágrimas de mãe conseguem tudo. Tanto fez que o casalzinho separou-se. O compadre? Apoiou a comadre: “Que estudem antes de namorar. Depois da faculdade, quem sabe?”. Pois agora veio a faculdade, o garoto vai se tornar veterinário e foi comemorar o sucesso no vestibular com o padrinho. Durante toda a noite bebeu e farreou com o compadre, enquanto o pai não conseguia dormir e enlouquecia com suas abelhas. Olha o enxame, prontinho! 

                 
Martinho atravessou a praça, olhou para o coreto e não viu seu instrumento. Lembrou-se do nascimento do menino e do grito do até agora desconhecido: “TEM GATO NA TUUUUBA”. Queria, alguém, avisá-lo de algo? Dezoito anos se passaram e não conseguiu, até hoje, reconhecer a voz. Quando tocava a última música, ouviu o mesmo grito. Não viu quem foi, porém seu ouvido de músico não se engana: “É o sustenido do compadre” Foi a gota d’água ou a abelha rainha?

                  
O delegado, seu freguês favorito, esperava à porta:

                  -Martinho, meu barbeiro. Veio entregar a espingarda? Faz bem, meu amigo, armas velhas são mais perigosas. Entre, vamos à minha sala.
O barbeiro adentrou a sala com o braço do delegado nos ombros. Espantado, deixou-se cair na cadeira ao ver o filho, a mulher, o compadre e a tuba. O filho foi o primeiro a falar.

                  -Papai, já expliquei tudo ao doutor. Esse negócio de limpar arma carregada dá nisso. Mamãe até desmaiou com o susto!

Martinho levantou-se e olhou para o compadre, pálido o homem tremia. A mulher, serena e sorridente o abraçou:

                  -Vamos para casa, querido, preparei o frango do jeito que você gosta. Ah... convidei o compadre para o almoço, o esfomeado aceitou na hora!

                 
Martinho, o barbeiro, saiu abraçado com sua mulher e com a tuba. Não sei dizer se tirou um cochilo depois do almoço.

23/12/2012

ESPADA-DE-SÃO-JORGE

Antes de mastigar o chocolate, ela fez cara de dengo:
                  -Fica mais um pouco... faço uma janta. Só nós dois, uma comida gostosa, com sobremesa bem doce...

Ele não fez cara alguma:
                  -Não dá. Sou casado, você sabe, mulher e uma filhinha... O que dizer em casa?

Olhos suplicantes e lábios úmidos:
                  -É infeliz, eu sei... Se largar aquela uma, tem acolhida, nem preciso jurar. Preciso? Com a menina dou um jeito, não me falta carinho com crianças...
                 
Jogou um dinheiro na penteadeira, antes da última sílaba do agradecimento já ganhava a porta de saída. Nada melhor do que o tempo para arrancar o sorriso da cara dessa gente de viração. O tempo tudo murcha, flor hoje adornando o vaso e amanhã um amarfanhado no lixo da cozinha. Com ele, não! Cada mulher em seu lugar. Não é assim com a sua? Nada melhor do que chegar em casa e provar sopa quente e vestir roupa limpa. Em casa tudo é livre da estrumeira das ruas. Quase tudo, ao menos a sopa e a roupa...
                 
Não fosse o tempo, o impiedoso, a florescer as imperfeições humanas... a perverter a consciência, relaxar a moral e distrair a beleza distribuindo rugas e cabelos brancos... Não é também assim em casa? Tanto é assim que precisa, o filósofo de garrafa, refugiar-se do mundo definhador no frescor da outra e afogar-se em goles que têm o sagrado poder de rejuvenescer o corpo e, em especial, os olhos e a língua. Mas hoje seria diferente, nada de álcool a embelezar o feio. 
                 
Têm momentos em que a realidade pega o sujeito de uma maneira que não há como fugir. Nem voando nas asas da ficção. E não é que a sujeitinha teve a coragem de oferecer acolhida? A mulher-de-rua, dama, bruaca, marafaia: “Com a menina dou um jeito, não me falta carinho com crianças”. Imagine quem quiser: minha menina, a santinha, ressonando nos braços da quenga. Coragem tem essa gente!
                 
A água do banho leva ao ralo o cheiro da outra, a roupa limpa encobre marcas que nem lembra como surgiram. Desce, pisando leve, os degraus que chegam à sala, atravessa o cômodo e lá está a mulher sentada à mesa. Ainda em silêncio, acomoda-se e começa a sorver o líquido grosso e pastoso:
                  -E você, não janta?
                  -Melhor sozinha...
                  -E nossa menina?
                  -Casa da avó... chega de ver o pai chegar bêbado.
                  -Não bebi. Nem percebeu...
                  -Percebi pelo cheiro. Correu a tomar banho... Pois saiba que nada tira o perfume de puta. Nem preciso de nariz... cheiro com os olhos.
                  -Mudando de assunto... do que é a sopa?
                  -Vegetais. O que tinha na cozinha...
                  -Ah...
                  -Podia ter jantado na casa da outra...
                 
A colher parou no meio do caminho e voltou ao prato, quis falar mas sentiu-se culpado. O silêncio do réu é confissão. Os olhos do criminoso confesso percorrem a cozinha, tudo parece velho: fogão, panelas, armários, mesas e cadeiras. A voz da mulher assemelha-se a um som fugidio e rouco de gramofone. Rugas são a própria etimologia da palavra: vielas vindas do infinito do rosto e terminando nos olhos cansados. Mais acima, na testa, ruas que não levam a lugar nenhum. Fios de cabelos que teimam em continuar claros, resistentes à mais escura das tinturas. Lábios secos e descoloridos a produzirem o som de disco antigo. 
                 
Agora os olhos vasculham o corpo da mulher e se deparam com o vestido que cobre braços e esconde os seios, fechando-se à custa de grandes botões que chegam à altura do pescoço. A roupa cinza, monocromática, lembra um falso crepúsculo no meio de um dia claro.
                  -O que tanto olha?
             -Por que não se arruma um pouco? Salão de beleza, roupas novas, essas coisas que as mulheres tanto gostam.
                 -Faltam motivo e tempo...
                -E a casa? Nenhum colorido, nada de flores...
                -Basta minha espada-de-são-jorge... E não é você quem diz que o tempo tudo murcha?
                 
Empurrou o prato de sopa, a pasta verde tingiu a toalha:
                  -Vou sair...
   
Alcançou o portão, passou pela planta e soltou o que pensava ser o pior dos xingamentos:
                  -Maldita!
                 
Em pé, da porta da cozinha, a mulher ouviu calada. Até hoje jura que o marido ofendeu sua plantinha e esta, se falasse, negaria, debochando: “Foi para você, boba...”.
                  
Voltou cambaleando. Se alguém viu, afirma que cantava uma valsa antiga. Ao custo que os bêbados pagam, conseguiu abrir o portão, olhou para o céu e a lua cheia prateava o caminho até a janela do quarto. Ele pensa que vislumbrou um vulto se furtando por trás da cortina, ou pode ser que viu mesmo. Parou na entrada da casa e, sem tirar os olhos da janela, urinou um liquido amarelo e brilhante por todas as folhas da planta. Ria alto soltando a alegria embriagada. 
                 
Subiu ao quarto, ainda rindo, jogou-se à cama. A mulher, de costas e olhos abertos, custou a entender o balbuciar:
                  -Malditas!
                 
Quando o despertador anunciou, feito um galo antigo, que a vida continuava sua caminhada rumo a não se sabe onde nem aonde, percebeu que melhor seria não ter acordado. Deu de cara com a mulher sentada a poucos metros da cama. Usava, a danada, um vestido decotado, curto e estampado com flores de todos os matizes. O cabelo, de um negror extremo, descia ao lado do rosto borrado com uma espécie de massa marrom-escuro que se espalhava pelo pescoço e afundava em direção aos seios. Melhor que dormisse profundamente a ver, no meio de tal imagem, a fenda vermelha que enodoava o que, até ontem, era uma boca de lábios secos. Nem percebeu que o buraco vermelho sorria. Melhor dizer que escarnecia. Alguém já teve pesadelo com o demônio vestido de palhaço? Igualzinho!
                 
Esfregou os olhos, como a querer, de fato, acordar. De imediato sentiu um ardor terrível acompanhado de coceira. Quanto mais coçava, mais ardia, os olhos e as mãos. Passou os dedos pelo rosto e percebeu feridas como se fossem queimaduras. Desceu as mãos pelo corpo e descobriu a nudez e, junto com ela as coceiras e queimaduras, no peito, barriga, virilhas, pernas. Sentou-se, assustado, à beira da cama.. Conseguiu abrir novamente os olhos e viu o corpo tomado por feridas. As palmas das mãos traziam uma gosma branca vinda de onde quer que tocasse. O diabo nem acudia, sorria vendo o homem a se coçar em desespero. A voz de disco riscado:
                  -As feridas fez sozinho. Também, quem mandou se coçar a noite toda? Nem me deixou dormir... E da sopa, gostou? Aposto que tem queimadura no estômago. Acertei?
                 
Fez que sim com a cabeça. Quis falar e não conseguiu, a língua parecia presa por uma meleca que escorria pelos cantos da boca. A cama, bem como o chão, estava tomada por folhas amassadas de espada-de-são-jorge.
                  -Gastei todas as folhas. Menos as que usei na sopa, é claro...
                 
A maldita levantou-se, foi ao banheiro e abriu o chuveiro. Jogou sobre a cama um pote de pomada e antes que o marido alcançasse a água salvadora, foi embora. Carregou a mala em silêncio.
Alguém viu alguma lágrima no rosto da estranha criatura?





10/08/2012

VENENO

O sol golpeou, foi um soco luminoso em seu rosto. Vindo mesmo da noite ou amanheceu? Despertou sem saber se tinha dormido. Na parede a claridade batia, chegando pela janela iluminou o nome de mulher escrito em vermelho no fundo branco, letras imprecisas, tremidas. Lembrou-se da boca e do batom.
Levantou-se e a cabeça quase estoura, sentou-se na cama: “que dia é hoje?”. Era sábado e tentou reconstruir a sexta-feira. Só se lembrava da visita do corretor de imóveis: um homenzinho de bigode enfiado em um terno largo, um enorme nariz cheirando tudo e servindo de apoio para os óculos de lentes verdes.
-Quer vender? Quer? Então pinte essas paredes com tinta bem grossa. Bem grossa, ouviu? Cubra esses garranchos e não se esqueça de dar um jeito nesse cheiro de não-sei-o-que.
Mal sabia, aquele anão de terno, cego e narigudo, que aqueles gar-ranchos são o nome dela, com sobrenome e tudo, o cheiro de não-sei-o-que é o perfume da traidora, da infiel, aquela uma, ingrata e safada, falsa, tão falsa quanto o piercing de prata no narizinho “que mandei por na véspera do abandono e infortúnio”. Ai, a boca de carmim:
-Não ficou uma gracinha, querido?
Ficou! Nem na pinacoteca viu narizinho assim. Uma graça!
O que mais para se lembrar da sexta-feira? Almoçou? Jantou? Tomou banho? Não sabe mais nada da sexta, nem da quinta, menos ainda da quarta. Sabe do estômago queimando, da cabeça querendo pular pela janela, sabe do perfume que invadiu o apartamento quando ela se foi. Uma semana e o odor ainda impregnava toda a casa. Acendia o fogão e vinha o cheiro, pegava uma panela e o aroma se alastrava, sentava à mesa e Deus me livre, abria a geladeira e cruz credo. Na sala ligou o ventilador, resfriou-se e espirrou e tossiu. O perfume nocivo brotava das paredes e do chão, ligava a televisão e a moça do tempo exalava o odor maldito. Ô praga de espólio que a zinha legou! Nem o narigão do baixinho para acabar com o cheiro! No quarto, destruiu o travesseiro, queimou o lençol e o colchão e algum vizinho gritou “fogo”. Apareceram baldes de água e até uma mangueira. Ao síndico jurou que foi acidente: “ o cigarro adormeceu nos meus dedos”. O homem achou bom que o apartamento estivesse à venda. Comprou cama, colchão, lençol e travesseiro ( e não é que vieram com o mesmo cheiro? ).
Olhou o relógio, onze horas e o fogo do estômago ardia na boca, escovou os dentes e barbeou-se. No armário do banheiro achou o frasco de perfume, jogou no ralo a saudade dela. Tomou um banho frio e saiu prometendo a si mesmo pintar as paredes e contratar uma faxineira.
No quarto ou quinto copo de conhaque os ponteiros do relógio tremiam marcando duas horas. Sem almoço e sem fome o estômago não mais queimava, o garçom tinha a cara feia e servia a quinta ou sexta dose. A ideia de vender o apartamento foi dela, queria um maior: “com mais espaço para as crianças, meu amor, ainda vamos ter. Não vamos?”. Procurou imobiliária, discutiu preço, fez tudo sozinha, a megera. Respirou fundo, fedia a conhaque barato, o garçom parece um rato e enchia seu copo, melhor o cheiro da bebida do que o perfume daquela uma, o garçom cheira como ela...parece o perfume ...
  Jogou o dinheiro na mesa e saltou para a rua, ainda ouviu o feioso gritar “olha o troco”, encostou-se à parede e saiu cambaleando, vez ou outra um muro ou uma porta servia de apoio. Sacou o lenço e grudou no nariz, mesma coisa que não fizesse nada, o cheiro era ainda mais forte. Virou-se à direita, inalou fortemente e a morena surgiu: os olhos azuis iluminavam o narizinho e o piercing prateado (uma graça), a boca de carmim (ai), o pescoço fino e cabelos curtos, orelhinhas de tantos segredos e mordidelas decoradas por brinquinhos (diamantes adornando diamantes). Os seios pequenos cresciam no vestido justo (presente de aniversário). “Alguém pensa que ela me viu? Se viu fez que não viu, a dissimulada”. Os pezinhos de anjo flutuavam nas sandálias douradas, o vestido curto mostrava a tatuagem na coxa (era meu nome e agora não sei), no tornozelo a correntinha de ouro (“Compra? Vai ficar tão bonitinho”). Seguiu a infiel, a ingrata, com ganas de dar uns tapas, umas mordidas e mil beijos. Na mão esquerda viu o anel de esmeralda (Esmeralda é o nome da mãe dela, “mamãe gosta tanto de você”, ainda pago o carnê) e na direita a bolsinha balançava e tocava levemente seu corpo.
Os pés se confundiam e tropeçavam seguindo a maldita, quase que atropela a ingrata quando ela para e beija o homem que a esperava, um homenzinho de terno largo, bigode, óculos de lentes verdes e nariz digno de um elefante. Tenta se apoiar em uma parede que não existe e se vê andando em ziguezague dentro de uma farmácia, recompõe-se o tanto que pode, solta dois botões da camisa, é difícil respirar, ainda sente o cheiro infernal, o conhaque queima o estômago e o fogo sobe pela gar-ganta. No balcão aponta a prateleira, a voz embarga. O atendente é solí-cito:
-Este?
Faz que não e aponta mais à esquerda.
-Este?
Faz sinal que sim, joga o dinheiro e toma da mão do vendedor. Tem pressa e abre o frasco com raiva. Bebe num gole só.
Porque o frasco caiu se não abriu a mão? E o vendedor, porque está assustado ao lado do bêbado deitado? “Ela nem me viu, se viu... sei lá, preciso levantar, primeiro tenho que mexer uma perna, não sinto as mãos, o vendedor mexe as mãos, anda e fala, daqui de baixo parece tão fácil, o estômago não queima, o garçom tem uma cicatriz abaixo do olho direito, peço socorro ou fecho os olhos, aquele de branco parece médico, venderei o apartamento, tenho um tubo na garganta, alguém me espetou o braço, vou mudar de imobiliária, o que o baixinho tem que eu não tenho, queria falar alguma coisa, olha o de branco falando com o vendedor”.
-Sabe o que ele bebeu?
-Seiva de Alfazema, doutor. Frasco grande.