23/12/2012

ESPADA-DE-SÃO-JORGE

Antes de mastigar o chocolate, ela fez cara de dengo:
                  -Fica mais um pouco... faço uma janta. Só nós dois, uma comida gostosa, com sobremesa bem doce...

Ele não fez cara alguma:
                  -Não dá. Sou casado, você sabe, mulher e uma filhinha... O que dizer em casa?

Olhos suplicantes e lábios úmidos:
                  -É infeliz, eu sei... Se largar aquela uma, tem acolhida, nem preciso jurar. Preciso? Com a menina dou um jeito, não me falta carinho com crianças...
                 
Jogou um dinheiro na penteadeira, antes da última sílaba do agradecimento já ganhava a porta de saída. Nada melhor do que o tempo para arrancar o sorriso da cara dessa gente de viração. O tempo tudo murcha, flor hoje adornando o vaso e amanhã um amarfanhado no lixo da cozinha. Com ele, não! Cada mulher em seu lugar. Não é assim com a sua? Nada melhor do que chegar em casa e provar sopa quente e vestir roupa limpa. Em casa tudo é livre da estrumeira das ruas. Quase tudo, ao menos a sopa e a roupa...
                 
Não fosse o tempo, o impiedoso, a florescer as imperfeições humanas... a perverter a consciência, relaxar a moral e distrair a beleza distribuindo rugas e cabelos brancos... Não é também assim em casa? Tanto é assim que precisa, o filósofo de garrafa, refugiar-se do mundo definhador no frescor da outra e afogar-se em goles que têm o sagrado poder de rejuvenescer o corpo e, em especial, os olhos e a língua. Mas hoje seria diferente, nada de álcool a embelezar o feio. 
                 
Têm momentos em que a realidade pega o sujeito de uma maneira que não há como fugir. Nem voando nas asas da ficção. E não é que a sujeitinha teve a coragem de oferecer acolhida? A mulher-de-rua, dama, bruaca, marafaia: “Com a menina dou um jeito, não me falta carinho com crianças”. Imagine quem quiser: minha menina, a santinha, ressonando nos braços da quenga. Coragem tem essa gente!
                 
A água do banho leva ao ralo o cheiro da outra, a roupa limpa encobre marcas que nem lembra como surgiram. Desce, pisando leve, os degraus que chegam à sala, atravessa o cômodo e lá está a mulher sentada à mesa. Ainda em silêncio, acomoda-se e começa a sorver o líquido grosso e pastoso:
                  -E você, não janta?
                  -Melhor sozinha...
                  -E nossa menina?
                  -Casa da avó... chega de ver o pai chegar bêbado.
                  -Não bebi. Nem percebeu...
                  -Percebi pelo cheiro. Correu a tomar banho... Pois saiba que nada tira o perfume de puta. Nem preciso de nariz... cheiro com os olhos.
                  -Mudando de assunto... do que é a sopa?
                  -Vegetais. O que tinha na cozinha...
                  -Ah...
                  -Podia ter jantado na casa da outra...
                 
A colher parou no meio do caminho e voltou ao prato, quis falar mas sentiu-se culpado. O silêncio do réu é confissão. Os olhos do criminoso confesso percorrem a cozinha, tudo parece velho: fogão, panelas, armários, mesas e cadeiras. A voz da mulher assemelha-se a um som fugidio e rouco de gramofone. Rugas são a própria etimologia da palavra: vielas vindas do infinito do rosto e terminando nos olhos cansados. Mais acima, na testa, ruas que não levam a lugar nenhum. Fios de cabelos que teimam em continuar claros, resistentes à mais escura das tinturas. Lábios secos e descoloridos a produzirem o som de disco antigo. 
                 
Agora os olhos vasculham o corpo da mulher e se deparam com o vestido que cobre braços e esconde os seios, fechando-se à custa de grandes botões que chegam à altura do pescoço. A roupa cinza, monocromática, lembra um falso crepúsculo no meio de um dia claro.
                  -O que tanto olha?
             -Por que não se arruma um pouco? Salão de beleza, roupas novas, essas coisas que as mulheres tanto gostam.
                 -Faltam motivo e tempo...
                -E a casa? Nenhum colorido, nada de flores...
                -Basta minha espada-de-são-jorge... E não é você quem diz que o tempo tudo murcha?
                 
Empurrou o prato de sopa, a pasta verde tingiu a toalha:
                  -Vou sair...
   
Alcançou o portão, passou pela planta e soltou o que pensava ser o pior dos xingamentos:
                  -Maldita!
                 
Em pé, da porta da cozinha, a mulher ouviu calada. Até hoje jura que o marido ofendeu sua plantinha e esta, se falasse, negaria, debochando: “Foi para você, boba...”.
                  
Voltou cambaleando. Se alguém viu, afirma que cantava uma valsa antiga. Ao custo que os bêbados pagam, conseguiu abrir o portão, olhou para o céu e a lua cheia prateava o caminho até a janela do quarto. Ele pensa que vislumbrou um vulto se furtando por trás da cortina, ou pode ser que viu mesmo. Parou na entrada da casa e, sem tirar os olhos da janela, urinou um liquido amarelo e brilhante por todas as folhas da planta. Ria alto soltando a alegria embriagada. 
                 
Subiu ao quarto, ainda rindo, jogou-se à cama. A mulher, de costas e olhos abertos, custou a entender o balbuciar:
                  -Malditas!
                 
Quando o despertador anunciou, feito um galo antigo, que a vida continuava sua caminhada rumo a não se sabe onde nem aonde, percebeu que melhor seria não ter acordado. Deu de cara com a mulher sentada a poucos metros da cama. Usava, a danada, um vestido decotado, curto e estampado com flores de todos os matizes. O cabelo, de um negror extremo, descia ao lado do rosto borrado com uma espécie de massa marrom-escuro que se espalhava pelo pescoço e afundava em direção aos seios. Melhor que dormisse profundamente a ver, no meio de tal imagem, a fenda vermelha que enodoava o que, até ontem, era uma boca de lábios secos. Nem percebeu que o buraco vermelho sorria. Melhor dizer que escarnecia. Alguém já teve pesadelo com o demônio vestido de palhaço? Igualzinho!
                 
Esfregou os olhos, como a querer, de fato, acordar. De imediato sentiu um ardor terrível acompanhado de coceira. Quanto mais coçava, mais ardia, os olhos e as mãos. Passou os dedos pelo rosto e percebeu feridas como se fossem queimaduras. Desceu as mãos pelo corpo e descobriu a nudez e, junto com ela as coceiras e queimaduras, no peito, barriga, virilhas, pernas. Sentou-se, assustado, à beira da cama.. Conseguiu abrir novamente os olhos e viu o corpo tomado por feridas. As palmas das mãos traziam uma gosma branca vinda de onde quer que tocasse. O diabo nem acudia, sorria vendo o homem a se coçar em desespero. A voz de disco riscado:
                  -As feridas fez sozinho. Também, quem mandou se coçar a noite toda? Nem me deixou dormir... E da sopa, gostou? Aposto que tem queimadura no estômago. Acertei?
                 
Fez que sim com a cabeça. Quis falar e não conseguiu, a língua parecia presa por uma meleca que escorria pelos cantos da boca. A cama, bem como o chão, estava tomada por folhas amassadas de espada-de-são-jorge.
                  -Gastei todas as folhas. Menos as que usei na sopa, é claro...
                 
A maldita levantou-se, foi ao banheiro e abriu o chuveiro. Jogou sobre a cama um pote de pomada e antes que o marido alcançasse a água salvadora, foi embora. Carregou a mala em silêncio.
Alguém viu alguma lágrima no rosto da estranha criatura?





14 comentários:

  1. Em cada texto um estilo diferente.
    E cada vez melhor.
    Desse jeito vai acabar criando um estilo...

    ResponderExcluir
  2. Olá, é interessante como consegue escrever tantas verdades em uma ficção tão curta.
    Parabéns pelas linhas e principalmente pelas entrelinhas.
    Um grande abraço.
    Augusto L. Cerqueira

    ResponderExcluir
  3. Muito legal!!
    http://www.catiaartesmanuais.com/

    ResponderExcluir
  4. Obrigada pela visitinha e volte sempre.... adorei o texto, super bem escrito.
    Beijo
    Boa semana

    ResponderExcluir
  5. Gostei muito - Hiran Pinel - Vitória - ES

    ResponderExcluir
  6. AMEI O TEXTO. MUITO VERDADEIRO E HILARIO. MULHERES TEM DISSO, SÃO VINGATIVAS.

    ResponderExcluir
  7. " O inferno desconhece a fúria de uma mulher desprezada."( Livro Advogado do Diabo)UM leitura que faz você ler sem parar. Gostei. BJs

    ResponderExcluir
  8. Gostos dos contos e das crônicas, enfim, das shorts stories que com poucas palavras, narrativas sucintas, mas bem descritas, dizem tudo.
    Parabéns!! Grata pelo convite e se gostar de poesias faça uma visita em meu blog- http://tudoepossivel-infinitoparticular.blogspot.com

    ResponderExcluir
  9. Muito bom. Bem tramado e divertido. abraço
    Regina

    ResponderExcluir