21/05/2012

O VÍCIO

                  Tem um vício, um único e exclusivo vício. Não bebe nem fuma e joga menos ainda. Melhor que não saísse de mesa de jogo e, bêbado, tragasse três maços de cigarros vagabundos por dia. Por que não perde o salário em apostas e volta para casa levando só um beijo? Ainda que seja um, unzinho, como ela diz. Melhor chegar carregado por vizinhos, tossindo conhaque azedado e com roupa suja. Bem melhor o filho de dez anos passar vergonha do pai. O que não pode é ter o vício que tem. A mulher, os parentes, vizinhos e amigos pedem e aconselham. Educado que só vendo, ouve calado, a cabeça baixa denuncia a postura dos errados. A mulher? Não tem coisa que já não tentou: pôs reza na comida e nas roupas, falou com o padre, ameaçou beber veneno e por vidro moído no jantar. Uma vez mandou o marido para a psicanálise, claro que não deu certo. Quatro sessões e já dormia com a doutora. Vizinha que fosse nova, o viciado labiava e, em pouco tempo, já abraçava e beijava. Colegas do escritório, casadas e solteiras, já foram todas vitimadas pela malícia do rasga-saia.
                  Não fosse tudo isso, ainda mantém uma zinha, com casa e comida e o que mais ela puder arrancar do degenerado. Duas visitas semanais custam os olhos e os cartões. É um tanto para o remédio do filhinho doente. Alguém viu criança alguma? Outro tanto para aluguel, luz, água e telefone. Quando pode, e tem que poder, uma joia para presentear a mãe que mora longe e uma camisa para o pai que vive no asilo. Basta uma boquinha e o corrompido derrete, uma linguinha e o impuro entrega dedos e anéis.
                  Quando um primo disse que o salafrário agia assim porque não amava a esposa, só não apanhou do mulherengo por interferência de outros parentes. Ama sim, a santa, a esposa, a mãe do seu filho. Um dia ainda vai mudar, sabe-se lá quando. Jura e até beija a medalhinha, é devoto de Santo Antônio.
                  A santinha, a esposa, sabia, desde os tempos de namoro, da iniquidade do sujeito. Fosse onde fosse, o diabinho atentava e o desalmado batia o rabo de olho em qualquer vestido que passasse. Tinha fé, a inocente, que o amor mudasse a criatura. Pois não muda nem amarrado. Comida do gosto dele, o docinho preferido. Sempre bonita, foi perdendo o gosto por se enfeitar. Roupa nova? Faz tempo não comprava. E era um nada de batom, creme ou o que fosse, já nem as unhas pintava. Tinha vergonha de sair à rua, ouvia seu nome sair das bocas boateiras. Conselhos não ouvia, que todos eles levavam à separação. Melhor com ele assim mesmo, do que sem ele. E, nesses momentos, tem a inimizade do tempo: o dia não passa e a noite não termina. Fez cursos de pintura e de poesia e não conseguiu pintar um verso que fosse. Brigar não adianta mais. Ameaças? Ele já nem liga. Jura que vai mudar, o safado, e vai atrás de algum vestido.
                  Foi, a imaculada, chorar no ombro materno. Ficara sabendo, por uma língua ferina, que o viciado mantinha amante. Com endereço e tudo! Era o fim: trocada por uma fulana com casa montada! Imagina! O marido dormindo ao lado da outra. O fim, mãezinha, o triste fim! Não? Ainda tem um jeito? Um trunfo? Ás na manga? Fala, mamãe, fala logo...
                  O menino dormindo e uma vizinha tomando conta. Nada de jantar, nem na mesa, nem no fogão, nem na geladeira. A mulher se vai e não sabe o paradeiro de ninguém e também se soubesse não falava, não gosta de se meter onde não é chamada. Quando a santinha chega tem outro cabelo: novo corte, tingido e arrumado. As unhas cortadas e pintadas de um vermelho de dona de cabaré. O que tem nas sacolas? Roupas, querido. Quer que mostre um vestido? Mostrou, ali mesmo, na sala, coladinho ao corpo, decotado e curto. Na cama, o tarado queria e ela sofria com dor de cabeça. Uma pena!
                  Os dias acabaram ficando curtos. Quem acha tempo para ginástica, cabelereiro, manicure, compras, um cineminha? Onde estava? Ah, uma bebidinha com as amigas. Tou bonita? Gostou da roupa? Tá com ciúme? E não é que o parvo nem respondia? Quis um beijo e ela até daria, não fosse a insistente dor de cabeça. Promete que amanhã chega cedo? Ele prometeu, o lambão.
                  A formiga do ciúme mora no travesseiro do infiel. Primeiro vem uma, depois outra, e outras, até que o famigerado se vê com a cabeça enfiada num formigueiro. Um amigo vaticinou: mulher casada que não se cuida empurra o marido para outra, mas mulher que muito se cuida empurra o marido para fora. Tem outro, a ex-santa, a desenvergonhada. Mulher nenhuma o atrai como antes, quinze dias faz que não visita a zinha. Sabe quantas vezes fizemos amor, nos últimos trinta dias? As formigas respondem em coro: nem uma vezinha! Nem um beijinho, desde que começou a se arrumar todo dia? O formigueiro, em festa: é a dor de cabeça! Nunca, nunca teve uma só dorzinha, nem na gravidez. Duas formiguinhas, uma em cada ouvido, murmuravam: fingida, fingida!
                  O que é bom fazer quando a noite não termina? Beber e fumar, começa amanhã. Por esta noite, basta lavar o rosto e beber água, sentar e por a cabeça para pensar. Até faria tudo isso, não fosse a bolsa em cima da mesa. Escova de cabelo, espelho, cosméticos, carteira e papel com nome de homem e número de telefone. Tivesse uma arma e mataria a sem-vergonha, nem se lembrou da faca de churrasco na gaveta da cozinha. Voltou ao quarto e vestiu-se, apanhou a mala vazia e a chave do carro. A leviana, a pagã, ressonava e sonhava com o amante. Tinha até um sorriso nos lábios.
                  Acelerou fundo enfrentando a escuridão da noite. Em minutos parava em frente à casa da outra, a chave na mão trêmula. Invadiu o quarto e nem notou o casal que dormia abraçado. Na mala enfiou todos os cosméticos que descansavam na penteadeira. Abriu uma das gavetas do armário e escolheu algumas calcinhas e sutiãs. Numa outra achou o colar de pérolas. 
                  Ao voltar, encontrou a mulher sentada na cama. Aonde foi, querido? Nem respondeu, mandou que a santinha tirasse a roupa. Tudo? Sim, tudo. Jogou o conteúdo da mala sobre a cama, a imaculada vestiu uma minúscula calcinha vermelha e um sutiã tão pequeno que só servia mesmo de enfeite. Meteu no pescoço o colar e tingiu os lábios de carmim. Abriu os braços e amaram-se. Os corpos se misturaram aos objetos da zinha.

7 comentários:

  1. Muito bom. Justo, preciso e com humor.
    Parabéns.

    Jaqueline

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  2. Ótimo conto, e excelente estilo.
    Muito bom mesmo, parabéns.
    Abraços.

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  3. Paulo César Cáceres Lecoros30 de julho de 2012 às 20:39

    Sim me diverti! Melhor de tudo: ninguém morreu "de morte matada" e nem "de morte morrida" apenas o amor teve vez; disse adeus uma vezes mas também definitivamente disse cheguei!!

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  4. Ótimo, ri, meditei e por fim concordo com essa esposa traída, e com o estilo do texto, mesmo não me achando ninguém para fazer qualquer tipo de julgamento sobre o assunto. Parabéns.

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  5. Muito bom, adorei! Gostoso de ler, estilo leve, bom humor, tudo do que eu gosto. Espero ver seus contos em livro, brevemente. Parabéns pelo talento.

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  6. Olá, adorei o blog... "Fez cursos de pintura e de poesia e não conseguiu pintar um verso que fosse. " e "vermelho de dona de cabaré" ganharam meu coração!
    Se puder, visite o http://borboletas-nuncamais.blogspot.com.br/

    Abraço
    Fernanda Hauptmann

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  7. Olá,

    Gostei muito dos seus textos, me lembram Machado de Assis, talvez o jeito de como usar as palavras para demonstrar o momento, ou mesmo como compara certas situações ou até mesmo certas expressões. xD
    De qualquer maneira está de parabéns.
    Continue assim.

    Adeus e beijos mórbidos meu caro.

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