15/12/2009

NÃO É BEM ASSIM...

“Ué, você não me conhece? Não sabe que nasci primeiro que a cidade”? Com estas duas perguntas, Antonio, ou melhor, Seu Antonio, encerrava qualquer discussão e conseguia livrar-se de todas as encrencas em que se metia. Encrencas causadas por ele mesmo, já que não tinha hábito de se meter em brigas alheias. Muito conhecido na cidade pequena, um dos primeiros fazendeiros que surgiram por ali, carpinteiro e dono da única serraria do local, ganhou dinheiro e respeito vendendo a madeira necessária para a expansão do então vilarejo. E usava e abusava dos privilégios que os moradores ofereciam em forma de presentes ou agrados de toda espécie. Até aceitava tudo como um tipo de reconhecimento ou mesmo como pagamento por tudo o que fizera pela comunidade. Afinal era padrinho de centenas de moradores. “A bênção, padrinho”. “Deus te abençoe”. Em seguida, perguntava à esposa, Dona Guilhermina: “Quem é esse?”. A mulher tinha que informar o nome do afilhado, filiação e mais algumas informações precisas e básicas ao reconhecimento do cidadão. “Ah...” fazia, como se lembrasse. Regras, normas, leis de trânsito, desconhecia-as totalmente. Mais de setenta anos de idade, dirigindo há mais de cinquenta, como o único policial de trânsito, cabo Silva, poderia multá-lo ou passar uma reprimenda qualquer? Havia na cidade duas ruas de mão única. Com intenção de provocar o cabo, trafegou na mão contrária de uma dessas ruas. O policial, zeloso de seu ofício, perseguiu o infrator pedalando furiosamente a velha bicicleta, a farda molhada de suor. Quando o alcançou, a humildade venceu o profissionalismo: “Bom dia, Seu Antonio. Queria só avisar ao senhor que esta rua é de mão única...” A resposta veio ensaiada: "Eu sei, cabo, acontece que você também está na mão contrária, correndo demais com essa bicicleta. Já pensou se atropela uma criança? Dê exemplo, cabo, dê exemplo....” e seguiu tranquilamente seu caminho, rindo, um riso solto e debochado, de moleque.
Certa noite, Seu Antonio, atravessando a praça central, viu por entre as sombras das árvores um casal trocando beijos e carícias. Fato comum, se ele fosse um homem comum, já que a praça mal iluminada era o local preferido pelos casais de namorados. Na impossibilidade de reconhecer os rostos, percebeu apenas o vestido branco. Branco com bolas pretas. Vestido que já vira em alguma oportunidade, sem lembrar onde ou quando. Na missa dominical? Alguma festa no clube? Será de alguma solteira? Casada? Dúvida beliscando a memória, passou muitos dias procurando a dona do vestido, encarando todas que cruzassem seu caminho. Dona Guilhermina chamava a atenção: ”Agora deu para encarar todas as mulheres? Seja respeitoso, homem, até na igreja! Nem deu atenção ao padre”. Todas as noites fazia o mesmo percurso pela praça, passeando o olhar pelas sombras, sem nada conseguir. Até o dia que recebeu a visita do novo gerente do único banco da cidade, Seu Nestor e esposa. Entre xícaras de café e bolinhos de chuva, o mistério foi resolvido. O vestido branco com bolas pretas enfeitando o corpo de Dona Belinha. Por certo não era o marido quem amassava aquele vestido de maneira tão furtiva, entre sombras acolhedoras. E já houve um boato, surgido da barbearia do Miltinho, segundo o qual Dona Belinha fora vista trocando olhares misteriosos com um médico da Santa Casa, Doutor Benício. Só boato, não confirmado nem desmentido pelo médico. Agora era diferente, não precisava de confirmação nenhuma. Tinha um fato, presenciado e investigado por olhos que nunca se enganaram.
“Miltinho, barba e cabelo”. Assim começou a narração do fato: testemunha ocular, acontecido, presenciado e investigado durante penosos dias, não esperava por essa, mulher dita séria, o marido até altas horas no banco, branco com bolas pretas, pequena abertura lateral, dá para ver parte da coxa, cruzou as pernas comendo bolinho de chuva, na praça era mão entrando pela abertura do vestido, a perna levantada abraçava o homem, a outra mão não viu, vai saber onde estava, pobre do Seu Nestor quando souber, só Deus sabe o que vai acontecer, mas quem vai contar? Quem contou ninguém sabe, em algumas horas o pobre do Seu Nestor estava queimando o vestido, fazendo as malas e mudando para a pensão Lar dos Estudantes. Missão cumprida. Não podia suportar infidelidade, ainda mais em uma cidade como essa, gente simples e honesta. Nem as reprimendas de Dona Guilhermina conseguiram deixar um pouquinho de remorso. Acima do remorso está a justiça. Justiça dos homens, a de Deus era lá com Padre Alberto. Dona Belinha que se confessasse e acertasse as contas na igreja.
E foi Padre Alberto quem resolveu visitar o boateiro para uma conversa particular. Sermão particular. Entre um gole e outro de cachaça, entre uns pedaços de queijo e goiabada exige, com força divina, a presença de Seu Antonio e de Dona Guilhermina na igreja: ”Amanhã bem cedinho, para esclarecer uns boatos que colocaram em risco os bons costumes e ultrajaram a honra de uma mulher religiosa e obediente aos sagrados mandamentos de Deus. O casal ultrajado e separado também estará presente”. Noite de insônia, milhares de formigas invadiram o travesseiro. Desobedecer ao padre, jamais. Melhor o formigueiro que o fogo do inferno.
“Bom dia, Seu Antonio, Dona Guilhermina, Seu Nestor, Dona Belinha”. Os quatro responderam ao cumprimento com sussurros, olhares no chão da igreja. “Dona Belinha me procurou, chorando as lágrimas de uma mulher sem lar e sem marido. Como guardião, por vontade divina, das almas católicas desta cidade, resolvi fazer algumas investigações por minha conta. A justiça de Deus poderia demorar um pouco e o caso pede urgência. Acontece, Seu Antonio e Seu Nestor, que existem mais dois vestidos iguais ao de Dona Belinha. Um deles veste as vergonhas da Dinda, da casa cheia de pecados. Fui pessoalmente conferir, sob os olhares desconfiados e risos de ironia dos pecadores do lugar, que Deus os perdoe. Não era a pecadora a mostrar os dotes do diabo na praça. Mas me segredou que comprou o vestido do Turco Jamil, que vem por aqui todos os meses e vende em prestações, que o mesmo jurou que só traz uma peça de cada roupa. O que é uma grande mentira que deve ser somada ao pecado da avareza. Já nem sei se o Turco Jamil é mais pecador que a Dinda, mas isso pode esperar pela justiça que demora mais um pouco. De posse do número de telefone do pecador muçulmano, liguei para ele na Capital. Confirmou que vendeu três vestidos e que prometeu exclusividade do modelo para as três mulheres. Uma delas a Dinda, que pagou a entrada com serviços. A outra, Dona Belinha, que deu a entrada em cheque e deve duas prestações. A terceira mulher não marcou o nome, porque comprou à vista. Só me faltava descobrir quem pecava na praça, expondo suas vergonhas às sombras e sucumbindo aos desejos do diabo, que o Senhor me perdoe por falar este nome na Sua Sagrada Moradia. Quatro noites escondido entre as árvores da praça, vejo o casal chegando para mais uma noite obscena. Apenas um casal de estudantes, fugindo do rigor dos pais. Passei uma descompostura e perdoei em troca da menina contar onde e de quem comprou o vestido. Foi mesmo do Turco Jamil. Vejam os senhores, só mesmo um muçulmano, quase pagão, para fazer uma confusão dessas. Caso encerrado, espero em Deus que Seu Nestor volte ao convívio de Dona Belinha que, já me disse, o perdoa em nome do amor que, este sim, é sagrado”.
Seu Nestor, em lágrimas, abraça Dona Belinha:
--Errei, dando crédito a falatório. Justo com você, Belinha. Com a permissão do padre, uma Santa !
Seu Antonio levanta-se:
--Não é bem assim... Tem também a história do Doutor Benício, lá da Santa Casa...

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