10/08/2012

VENENO

O sol golpeou, foi um soco luminoso em seu rosto. Vindo mesmo da noite ou amanheceu? Despertou sem saber se tinha dormido. Na parede a claridade batia, chegando pela janela iluminou o nome de mulher escrito em vermelho no fundo branco, letras imprecisas, tremidas. Lembrou-se da boca e do batom.
Levantou-se e a cabeça quase estoura, sentou-se na cama: “que dia é hoje?”. Era sábado e tentou reconstruir a sexta-feira. Só se lembrava da visita do corretor de imóveis: um homenzinho de bigode enfiado em um terno largo, um enorme nariz cheirando tudo e servindo de apoio para os óculos de lentes verdes.
-Quer vender? Quer? Então pinte essas paredes com tinta bem grossa. Bem grossa, ouviu? Cubra esses garranchos e não se esqueça de dar um jeito nesse cheiro de não-sei-o-que.
Mal sabia, aquele anão de terno, cego e narigudo, que aqueles gar-ranchos são o nome dela, com sobrenome e tudo, o cheiro de não-sei-o-que é o perfume da traidora, da infiel, aquela uma, ingrata e safada, falsa, tão falsa quanto o piercing de prata no narizinho “que mandei por na véspera do abandono e infortúnio”. Ai, a boca de carmim:
-Não ficou uma gracinha, querido?
Ficou! Nem na pinacoteca viu narizinho assim. Uma graça!
O que mais para se lembrar da sexta-feira? Almoçou? Jantou? Tomou banho? Não sabe mais nada da sexta, nem da quinta, menos ainda da quarta. Sabe do estômago queimando, da cabeça querendo pular pela janela, sabe do perfume que invadiu o apartamento quando ela se foi. Uma semana e o odor ainda impregnava toda a casa. Acendia o fogão e vinha o cheiro, pegava uma panela e o aroma se alastrava, sentava à mesa e Deus me livre, abria a geladeira e cruz credo. Na sala ligou o ventilador, resfriou-se e espirrou e tossiu. O perfume nocivo brotava das paredes e do chão, ligava a televisão e a moça do tempo exalava o odor maldito. Ô praga de espólio que a zinha legou! Nem o narigão do baixinho para acabar com o cheiro! No quarto, destruiu o travesseiro, queimou o lençol e o colchão e algum vizinho gritou “fogo”. Apareceram baldes de água e até uma mangueira. Ao síndico jurou que foi acidente: “ o cigarro adormeceu nos meus dedos”. O homem achou bom que o apartamento estivesse à venda. Comprou cama, colchão, lençol e travesseiro ( e não é que vieram com o mesmo cheiro? ).
Olhou o relógio, onze horas e o fogo do estômago ardia na boca, escovou os dentes e barbeou-se. No armário do banheiro achou o frasco de perfume, jogou no ralo a saudade dela. Tomou um banho frio e saiu prometendo a si mesmo pintar as paredes e contratar uma faxineira.
No quarto ou quinto copo de conhaque os ponteiros do relógio tremiam marcando duas horas. Sem almoço e sem fome o estômago não mais queimava, o garçom tinha a cara feia e servia a quinta ou sexta dose. A ideia de vender o apartamento foi dela, queria um maior: “com mais espaço para as crianças, meu amor, ainda vamos ter. Não vamos?”. Procurou imobiliária, discutiu preço, fez tudo sozinha, a megera. Respirou fundo, fedia a conhaque barato, o garçom parece um rato e enchia seu copo, melhor o cheiro da bebida do que o perfume daquela uma, o garçom cheira como ela...parece o perfume ...
  Jogou o dinheiro na mesa e saltou para a rua, ainda ouviu o feioso gritar “olha o troco”, encostou-se à parede e saiu cambaleando, vez ou outra um muro ou uma porta servia de apoio. Sacou o lenço e grudou no nariz, mesma coisa que não fizesse nada, o cheiro era ainda mais forte. Virou-se à direita, inalou fortemente e a morena surgiu: os olhos azuis iluminavam o narizinho e o piercing prateado (uma graça), a boca de carmim (ai), o pescoço fino e cabelos curtos, orelhinhas de tantos segredos e mordidelas decoradas por brinquinhos (diamantes adornando diamantes). Os seios pequenos cresciam no vestido justo (presente de aniversário). “Alguém pensa que ela me viu? Se viu fez que não viu, a dissimulada”. Os pezinhos de anjo flutuavam nas sandálias douradas, o vestido curto mostrava a tatuagem na coxa (era meu nome e agora não sei), no tornozelo a correntinha de ouro (“Compra? Vai ficar tão bonitinho”). Seguiu a infiel, a ingrata, com ganas de dar uns tapas, umas mordidas e mil beijos. Na mão esquerda viu o anel de esmeralda (Esmeralda é o nome da mãe dela, “mamãe gosta tanto de você”, ainda pago o carnê) e na direita a bolsinha balançava e tocava levemente seu corpo.
Os pés se confundiam e tropeçavam seguindo a maldita, quase que atropela a ingrata quando ela para e beija o homem que a esperava, um homenzinho de terno largo, bigode, óculos de lentes verdes e nariz digno de um elefante. Tenta se apoiar em uma parede que não existe e se vê andando em ziguezague dentro de uma farmácia, recompõe-se o tanto que pode, solta dois botões da camisa, é difícil respirar, ainda sente o cheiro infernal, o conhaque queima o estômago e o fogo sobe pela gar-ganta. No balcão aponta a prateleira, a voz embarga. O atendente é solí-cito:
-Este?
Faz que não e aponta mais à esquerda.
-Este?
Faz sinal que sim, joga o dinheiro e toma da mão do vendedor. Tem pressa e abre o frasco com raiva. Bebe num gole só.
Porque o frasco caiu se não abriu a mão? E o vendedor, porque está assustado ao lado do bêbado deitado? “Ela nem me viu, se viu... sei lá, preciso levantar, primeiro tenho que mexer uma perna, não sinto as mãos, o vendedor mexe as mãos, anda e fala, daqui de baixo parece tão fácil, o estômago não queima, o garçom tem uma cicatriz abaixo do olho direito, peço socorro ou fecho os olhos, aquele de branco parece médico, venderei o apartamento, tenho um tubo na garganta, alguém me espetou o braço, vou mudar de imobiliária, o que o baixinho tem que eu não tenho, queria falar alguma coisa, olha o de branco falando com o vendedor”.
-Sabe o que ele bebeu?
-Seiva de Alfazema, doutor. Frasco grande.